terça-feira, 15 de setembro de 2009

ARTIGO: LEI NACIONAL X LEI FEDERAL

Lei Nacional X Lei Federal
Renata Benedet

1. Repartição de competências na Constituição Brasileira de 1988
Um dos fundamentos essenciais para a existência de um Estado federal é a construção de um sistema de delimitação de competências pela Constituição da Federação. A solução encontrada pela fórmula originária do modelo federal – o norte-americano – teve seu fundamento pautado nos poderes estaduais, favorecendo-os. As competências dos poderes federais foram expressa e restritivamente elencados na Constituição norte-americana, deixando aos poderes estaduais, a competência reservada, remanescente ou não enumerada. As matérias que não estivessem contidas no rol das competências do Estado federal seriam dos poderes estaduais (cláusula expansiva). A técnica constitucional de repartição de competências formulada pelo constituinte da Filadélfia, firmada no plano de repartição horizontal de competências exerceu e exerce influências na organização de estados federais, admitindo, contudo, algumas variações. Segundo Horta, são as seguintes: a) repartição exaustiva da competência de cada ordenamento; b) enumeração da competência da União e atribuição aos Estados de poderes reservados ou não enumerados; c) enumeração da competência dos Estados-Membros e atribuição à União de poderes reservados.
Ao lado da repartição horizontal de competências, há a repartição no plano vertical, quando se observa a distribuição de competências da mesma matéria legislativa, aos diversos entes federados, formando "um verdadeiro condomínio legislativo", pelo qual à União cabe a produção de normas gerais, e aos Estados-membros a possibilidade de individualizá-la, atendendo às necessidades e peculiaridades locais.
Importante destacar que a Constituição Brasileira de 1988 traz em seu bojo, técnicas de repartição diferenciadas, coabitando variações de técnica de repartição de competências vertical e horizontal. O exemplo que suscita dúvidas é a técnica elaborada pelo Constituinte no art. 23, o rol de competências comuns (cumulativas), pela qual todos os entes federados possuem a mesma competência simultaneamente, ao mesmo tempo, exemplo desta competência é a comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios de zelar pela guarda da Constituição (art. 23, I da CRFB/88). Este "condomínio de competências" não se confunde com o sistema de repartição vertical, pois é simultânea e paralela, revelando-se no sistema horizontal (competências horizontalmente distribuídas). Aqui não há a complementação por parte dos entes federados, mais sim uma atuação conjunta, que não depende da observância de regras gerais vinculadas pela legislação federal.
Na repartição de competências na Constituição Brasileira há competências legislativas privativas da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios; competências administrativas exclusivas da União e competências administrativas comuns da União , Estados, Distrito Federal e Municípios – sistema de repartição horizontal. Como único exemplo do sistema de repartição vertical na Constituição tem-se a competência legislativa concorrente da União, Estados e Distrito Federal, com regras de atuação dos entes federados bem definidas pelo Constituinte.
Diante desta complexidade do sistema de repartição de competências na Constituição, há uma regra que visa racionalizar toda a técnica, é a da predominância de interesse: à União cabe legislar sobre assuntos gerais; ao Estado, assuntos regionais; ao Município, assuntos de interesse local; e ao Distrito Federal, regional e local.
2. Distinção e validade da Lei Nacional e Lei Federal
Para a existência de uma Federação, dividido em várias unidades políticas autônomas, é necessário a divisão territorial do Poder (descentralização), pela qual cada unidade detém uma parcela do Poder – imprescindível para exercer sua autonomia – que convergirá para a formação do todo, o Poder Nacional, total, global, que no caso é do Estado Federal. O Estado Federal, descentralizado, conjetura-se com a norma jurídica, também descentralizada, com diferentes esferas territoriais de validade. Kelsen afirma que algumas das normas serão válidas para o território inteiro – do contrário, este não seria o território de uma única ordem -, enquanto outras serão válidas apenas para diferentes partes dele. Sugerimos que as normas válidas para o território inteiro sejam chamadas normas centrais e as normas válidas só para uma parte do território, normas não centrais ou normas locais.
A autonomia normativa conferida pela Constituição Brasileira de 1988 (Nacional), de se auto-organizar, pressupõe a existência e divisão espacial do Poder Legislativo: o Poder Legislativo da União, o Estadual, o Distrital e o Municipal. O Poder Legislativo da União é nacional e central. O Legislativo dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios são Poderes locais e parciais. Esta divisão espacial do Poder tem implicância direta no campo de validade das normas. Doutrina Kelsen que, se o Estado é concebido como uma ordem de conduta humana e, deste jeito, como um sistema de normas que são vigentes tanto temporal como espacialmente, então o problema de um desmembramento territorial do Estado em províncias ou em chamados Estados-membros é um problema especial do domínio espacial de validade das normas que formam a ordem estadual.
No Estado Federal Brasileiro o Poder Legislativo Nacional e Central é "presentado" pelo Congresso Nacional, através das suas duas Casas, portanto, bicameral – Câmara dos Deputados (federais) e Senado; o Legislativo Estadual são as Assembléias Legislativas (Deputados Estaduais); o Distrital, a Câmara Distrital (Deputados Distritais); e o Municipal, a Câmara Municipal (Vereadores). Cada qual com função legiferante - produção de Leis – cuja competência é legitimada pela Constituição através do sistema de repartição de competências conforme a regra básica da predominância de interesse.
Neste sentido, a União produz normas gerais, válidas para todo Estado Federal – normas centrais -, mas também produz normas parciais, válidas apenas para a pessoa jurídica de direito público que a instituiu. No primeiro caso estar-se-á diante de Leis Nacionais; no segundo, Leis Federais. Aí, surge, consoante ensinamento de Hélio do Valle Pereira, a distinção entre leis nacionais e leis federais. Aquelas são relativas à atribuição legislativa da União como ente que congrega todas as pessoas políticas, estabelecendo normas a eles comuns (p. ex., direito penal, normas gerais tributárias). As leis federais referem-se à regulamentação de situações que envolvem exclusivamente a União, como pessoa pública equiparada às demais ( v.g. , estatuto de seus servidores, criação de imposto federal).
O Congresso Nacional, neste contexto, absorve dupla função: a de produzir Leis Nacionais com força vinculante em todo o Estado Federal, que se aplica, indistintamente à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios; e a de produzir Leis Federais, parciais, válidas apenas para a pessoa jurídica de direito público interno que a produziu – a União – com o fim de se auto-organizar, disciplinando suas relações jurídicas, órgãos, entidades, recursos humanos, cargos, funções, etc. Assim, estas, as Leis Federais, equivalem às Leis Estaduais, Distritais ou Municipais, formando ordens jurídicas parciais que juntamente com a ordem jurídica central – Lei Nacional - formam a ordem jurídica total ou nacional, que constitui a comunidade jurídica total, o Estado, na concepção da Hans Kelsen. Como se disciplinará a convivência dessas várias ordens jurídicas? Cada ente federado tem seu campo próprio de atuação estabelecido pela Constituição (Nacional), não há, necessariamente, hierarquia entre as várias ordens, a hierarquia se verifica apenas em relação à Constituição Nacional, que é suprema, as demais ordens jurídicas estão num nível de representação espacial do sistema desenvolvido na Constituição. Por este sistema (repartição de competências) tem-se a Constituição como norma superior, de validade nacional, total, de observância obrigatória pelo legislador das diversas ordens que fazem parte da comunidade jurídica total, delimitando e legitimando a esfera de atuação de cada uma delas.
Canotilho descreve a superioridade hierárquica normativa da Constituição em três expressões: (1) as normas constitucionais constituem uma lex superior que recolhe o fundamento de validade em si própria (autoprimazia normativa); (2) as normas da constituição são normas de normas (normae normarum) (3) a superioridade normativa das normas constitucionais implica o princípio da conformidade de todos os actos dos poderes públicos com a Constituição.
Em posição hierárquica inferior à Constituição estão as Leis Nacionais, porque válidas, também e indistintamente, para todas as ordens jurídicas (da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios), e no mesmo nível, abaixo (não no sentido hierárquico, mas de divisão espacial) das Leis Nacional, estão as leis próprias de cada pessoa jurídica, válidas apenas para cada uma delas, com exceção das leis Estaduais, com validade territorial de abrangência Estadual e Municipal, no que não interessar apenas à pessoa jurídica de direito público interno que a instituiu.
Seja a Lei Nacional, Federal, Estadual, Distrital ou Municipal, cada qual possui seu campo de competências reservadas pela Constituição Nacional, e por conseguinte, não podem com ela conflitar, sob pena de perderem seu fundamento de validade, de serem (in)constitucionais, contrárias formal ou materialmente ao estabelecido pelo Constituinte. No mesmo raciocínio, a Lei Nacional, que deve observância à Constituição, deve ser observada pelo legislador na produção de Leis Federais, Estaduais, Distritais ou Municipais. Por este sistema de organização pode-se estruturá-las, conforme a fundamentação, em níveis de validade: no primeiro nível a Constituição Nacional, como fundamento de validade de todo o ordenamento jurídico; no segundo a Lei Nacional, que deve observância apenas à Constituição; no terceiro a Lei Federal, Estadual, Distrital, que não podem conflitar com a Lei Nacional, sob pena de serem ilegais, e sobremaneira conflitar com a Constituição, sob pena de serem inconstitucionais; e, num quarto nível tem-se a Lei Municipal cuja produção encontra limites na Constituição Nacional, na Lei Nacional e na Lei Estadual, neste último caso, conforme contornos já delimitados para a Lei Nacional e Lei Federal.
Ressalta-se que não se deve limitar-se apenas à distinção formal entre Leis Nacionais e Leis Federais obstando desta um campo de possível ingerência na formação daquela. Há princípios, presentes em todo Estado Democrático de Direito, que são a fundamentação da validade de todo o ordenamento jurídico, funcionam como verdadeiros núcleos de condensação desse sistema de coexistência das normas. O Legislador possui limites à produção das normas dentro do campo de competências estabelecido pela Constituição, mas muito mais, encontra seus limites nos princípios informadores da ordem constitucional. Como exemplo pode-se citar o princípio da isonomia consubstanciado no art. 5°, caput, da CRFB/88. Por este princípio a Constituição veda, na produção normativa, discriminações injustificadas; no mesmo sentido, prevê a paridade entre os entes federados. Daí se conclui, interpretando-se dentro dos critérios da razoabilidade e proporcionalidade, que o Legislativo da União, na esfera da competência de produção de Leis Federais, não pode incorrer em atentados contra a isonomia dos entes federados, privilegiando órgãos e entidades federais em detrimento das estaduais, distritais ou municipais, e, no mesmo raciocínio, discriminando, perante a lei, as pessoas sujeitas àquela ordem normativa.
3. Considerações finais
Em que pesem discussões acerca do modelo de Estado Federal instituído pela Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, com a Federação distribuída em três níveis distintos: União, Estados-membros e Distrito Federal, e Municípios; a União, como ente federado interno e autônomo é quase inexistente na Constituição, o que gera dúvidas acerca de sua competência legislativa no campo exclusivo de ente componente da Federação.
No sistema de repartição de competências adotado pelo Constituinte, que se mescla entre o horizontal (competências discriminadas privativas, exclusivas ou paralelas) e vertical ( concorrente), a União - nas competências legislativas presentada pelo Congresso Nacional – possui competências privativas, e concorrentes com os Estados e Distrito Federal, produzindo normas gerais, válidas nacionalmente. A Constituição, porém, foi omissa na delimitação de competências da União em produzir normas específicas indispensáveis à auto-organização e normatização do ente federado autônomo, disciplinando seus órgãos, serviços, servidores, etc..., válidas apenas no âmbito espacial daquele Poder (órgãos e entidades federais). É neste aspecto que se distingue a Lei Nacional da Lei Federal, naquela a União atua como representante da soberania estatal, como conjunto das partes, como todo; nesta atua com autonomia, como parte do conjunto, produzindo normas locais, parciais, em nada se diferenciando dos Estados, Distrito Federal ou Município, que também produzem normas locais, parciais, válidas, apenas, no âmbito espacial de delimitação de seu Poder. Na concepção de kelsen, todas as ordens normativas, até a central (Lei Nacional), são parciais, formando juntas, a "comunidade jurídica total" do Estado.
A importância da distinção e validade espacial da Lei Nacional e Lei Federal não se restringe apenas ao aspecto formal, consubstanciado pela repartição de competências constitucional, atrela-se aos princípios fundamentais do Estado Democrático Brasileiro instituído pela Constituição, principalmente na observância da isonomia entre os entes da federação, vedando ao legislador produções legislativas discriminatórias, atentatórias ao princípio paritário das unidades políticas da Federação.
Apesar da divisão espacial do Poder, pressuposto essencial à descentralização política, não há qualquer disposição hierárquica entre os entes federados, apenas uma esfera de abrangência (competência) do Poder auferida pela Constituição, e, por conseguinte, de validade normativa territorial limitada. Assim se depreende que o único que detém a soberania sobre todo o território brasileiro é a República Federativa do Brasil, conseqüentemente, sua Constituição é a única e exclusiva detentora da supremacia no ordenamento jurídico, a única com posição hierárquica superior; já, os entes políticos são autônomos, portanto, seus poderes estão reservados pela Carta Suprema, assim como suas competências. Neste ínterim, à União reserva-se, num primeiro nível, a competência em produzir Leis Nacionais, válidas em todo território, com as limitações constitucionais; e num segundo nível, de produzir Leis Federais, locais, como os demais entes políticos autônomos (Estados-membros, Distrito Federal e Municípios).
O pressuposto lógico-racional da existência de várias ordens jurídicas coabitando numa mesma comunidade jurídica, está ínsito na forma de Estado federal, estruturado a partir de uma divisão espacial do Poder – descentralização - e distribuição de competências pela Constituição. O grau de centralização ou descentralização deste modelo de Estado pode ser aferido pelo número e imponência das normas centrais (nacionais). Portanto, resta-nos refletir e dimensionar o Estado Federal Brasileiro quanto ao grau de centralização ou descentralização com o seguinte questionamento: na repartição de competências, parcela de Poder que coube à União quanto a produção de Leis Nacionais, centrais, verifica-se um equilíbrio federativo, quantitativo e qualitativo, em relação à parcela de Poder dos Estados e Distrito Federal (considerando-se, por ora, apenas os dois níveis da Federação)?

HORTA, Raul Machado.Direito Constitucional. p. 319.
HORTA, Raul Machado.Direito Constitucional. p. 320.
HORTA, Raul Machado.Direito Constitucional. p. 321.
Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.
TAVARES, André Ramos. Curso de direito constitucional. 2 ed. São Paulo: Saraiva, 2003. p.840.
Não se discorrerá neste artigo sobre os diversos conceitos e concepções doutrinárias sobre validade, vigência e eficácia da norma jurídica. Para efeitos semânticos, tratar-se-á a validade da norma pela sua existência, com a devida publicação no órgão oficial, dentro dos critérios de divisão espacial do Poder estabelecido na Constituição.
KELSEN, Hans. Teoria geral do direito e do estado.p.434.
KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. Trad. João Baptista Machado. 6 ed. São Paulo: Martins Fontes, 1988.p. 347.
Pontes de Miranda apud Hélio do Valle Pereira, doutrina que não há de se fala em representação, mas em presentação. “O representante fala em nome de outrem, o presentante, atuando nesta qualidade, é a manifestação da própria pessoa.” PEREIRA, Hélio do Valle. Manual da fazenda pública em juízo. p. 7-8.
.” PEREIRA, Hélio do Valle. Manual da fazenda pública em juízo. p. 7, nota de rodapé.
KELSEN, Hans. Teoria geral do direito e do estado.p.434-435.
CANOTILHO, João Joaquim Gomes. Direito constitucional.6 ed. Coimbra: Livraria Almedina, 2002. p.113.
AMARAL, Antônio Carlos Cintra. Concessão de serviço público: validade de leis estaduais ou municipais que estipulam isenção de tarifa.
Exemplo prático é o disposto no art. 61 da Lei Nacional 9.099/95, que considera infrações de menor potencial ofensivo as contravenções penais e os crimes com pena máxima não superior a 1 (um) ano, e a Lei Federal 10.259/01 - institui os Juizados Especiais Cíveis e criminais no âmbito da Justiça Federal – no art 2°, parágrafo único, considera infração de menor potencial ofensivo os crimes cuja pena não ultrapassem 2 (dois) anos. A jurisprudência e doutrina já pacificaram entendimento de que a regra da Lei Federal quanto às infrações de menor potencial ofensivo aplica-se aos Juizados Estaduais. Neste sentido, a jurisprudência do Tribunal de Justiça de Santa Catarina: "Embora a conceituação de maior abrangência tenha destinação específica - 'para os efeitos desta lei' - bem como a proibição expressa de sua aplicação no âmbito da Justiça Estadual, artigo 20, última parte, há entendimento, praticamente unânime, em sentido contrário, sob pena de restar violado o princípio da igualdade assegurado na Constituição Federal" (Ap. Crim. n. 2002.002859-2, de Curitibanos, rel. Des. Maurílio Moreira Leite).
KELSEN, Hans. Teoria geral do direito e do estado.p.436.

Um comentário:

  1. Parabéns pelo artigo, muito didático e elucidador, que abrange o assunto tocando em todos os tópicos correlatos importantes para o entendimento.

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